Chamada para o dossiê Memória e Epistemologias do Sul Global
Editoras convidadas: Anna Cavalcanti (WWU) e Luciana Amormino (UFMG)
Datas importantes:
Data limite de submissão: 28 de fevereiro de 2026
Período de avaliação: 28 de fevereiro a 15 de junho 2026
Data prevista para publicação: 31 de agosto de 2026
Uma das questões centrais na temática da colonialidade situa-se no âmbito da produção e circulação de conhecimentos na contemporaneidade. A discussão sobre a colonialidade do saber emerge da experiência moderna que dividiu o mundo em zonas metropolitanas e periféricas, civilizadas e incivis, relevantes e irrelevantes, Norte e Sul Globais. Refletir a partir das epistemologias do Sul significa, portanto, pensar em formas de reconfigurar a imaginação política sobre o mundo a partir de narrativas não hegemônicas (Quijano, 2000; Mignolo, 2003; Walsh, 2009).
Entendendo o conceito de Sul Global como um construto teórico e não simplesmente um referencial geográfico, desenha-se um mapa de dor e de luta, ambas distribuídas desigualmente pelo mundo, onde uma multiplicidade de conhecimentos foi invisibilizada e desperdiçada por uma história de epistemicídios (Rivera Cusicanqui, 2010). Ao buscar visibilizar saberes e práticas excluídos, reconhecemos uma pluralidade de conhecimentos e experiências que resistiram às lógicas coloniais e foram reconfiguradas narrativamente.
Nesse contexto, a memória é um elemento central no processo de decolonização do conhecimento, ao permitir que saberes marginalizados pelo colonialismo retornem e desafiem a narrativa eurocêntrica da história. Sintetizamos, neste dossiê, a necessidade de partir dos estudos de memória como referenciais para o reconhecimento de outras epistemologias e a propulsão de outras fontes de saber e de comunicação sobre o passado no presente. Orlando Fals Borda, sociólogo colombiano, denominou este processo de apropriação coletiva do conhecimento histórico de “Recuperação Crítica da História” (RCH) (Fals Borda, 1999). Essa proposta busca abrir espaço para a reflexão sobre iniciativas de memória que buscam reparar apagamentos sistemáticos, como museus comunitários, arquivos populares e cartografias contra-hegemônicas a partir de vozes e experiências do Sul Global, como indígenas, afrodescendentes, mulheres, campesinos e outros setores sociais excluídos historicamente. Autoras como Marianne Hirsch, com o conceito de pós-memória, Saidiya Hartman, com a noção de fabulação crítica, e Ariella Azoulay, com sua história potencial, trazem um aporte fundamental para pensar a memória como ferramenta contra o apagamento histórico e como meio de reconstruir histórias silenciadas (Hirsch, 2022; Hartman, 2008).
Para articular essas experiências, pensamos juntamente aos estudos que trabalham a memória não como arquivo fechado, mas como processo dinâmico e político, ativo no presente. Como coloca Achiles Mbembe, “não existem arquivos sem fissuras” (Mbembe, 2017, p. 228). Dessa maneira, o dossiê pretende contribuir diretamente para a reunião de propostas em torno da ideia de memória decolonial, a qual não se coloca em função de um resgate do passado, mas se propõe a interpretá-lo a partir de perspectivas minorizadas. Na perspectiva da RCH, ao recuperarmos memórias silenciadas ou apagadas, propomos uma reapropriação das narrativas identitárias de povos marginalizados.
A recuperação dessa memória desempenha um papel essencial na afirmação das epistemologias do Sul Global, tendo em vista que uma das principais formas de dominação eurocêntrica se deu por meio da produção e do controle sobre o passado (Florescano, 1998; Torres, 1993). Essa manipulação do passado, portanto, é uma forma de apropriação da memória social, das epistemologias do Sul, as quais foram, por vezes, impostas, inventadas e recriadas em suas identidades, fruto de batalhas e disputas entre diferentes versões históricas.
Ao reconhecer o caráter constitutivo do passado na formação da memória, impõe-se, neste dossiê, a necessidade de construção de formas alternativas de produção do conhecimento histórico que fortaleçam as identidades coletivas e a capacidade de ação de populações historicamente subalternizadas (Carrillo, 2003). Nesse sentido, desejamos reunir contribuições que pensem a partir de outras modalidades de produção do saber histórico, formas que não apenas se alimentem da memória como referencial teórico, mas que a reconheçam em sua perspectiva metodológica a partir da qual seja possível interpretar criticamente as histórias regionais e nacionais em sua complexidade.
Nesse sentido, damos relevância à ideia de ch’ixi, desenvolvida pela socióloga boliviana Silvia Rivera Cusicanqui (2018), a qual propõe a coexistência da multiplicidade entre elementos por vezes distintos e opostos, sem que haja uma fusão ou síntese: os pensamentos coloniais e ancestrais podem, portanto, se entrecruzar e coexistir. Assim, em vez de idealizar uma identidade única e homogênea, o ch’ixi valoriza a diferença e sustenta a luta contra a dominação colonial por meio da construção de mundos alternativos a partir dos conhecimentos do Sul.
Por fim, o dossiê soma-se à demanda, identificada no âmbito da Rede Brasileira de Pesquisadores de Memória e Comunicação – Rememora, por uma ampliação dos estudos sobre memória para além das referências clássicas eurocêntricas. Embora essas referências sejam fundamentais para a consolidação do pensamento sobre memória social e coletiva, mostram-se hoje insuficientes para abarcar as especificidades do campo quando situado a partir do Sul Global.
Convidamos, portanto, pesquisadores para contribuírem com textos que reflitam sobre as questões aqui propostas, numa perspectiva transversal que, no campo da memória, incorpore uma visada decolonial, a partir de um diálogo com epistemologias do Sul Global. Serão bem-vindas contribuições que abordem os seguintes pontos:
- Problematização e discussão sobre a episteme da memória, de forma ampla, no Sul Global;
- Ferramentas teóricas e metodológicas para descolonizar o conhecimento e a memória;
- Memória e feminismos;
- Ancestralidades, saberes e memórias indígenas e/ou afrodiaspóricas;
- Memória coletiva e práticas decoloniais;
- Memória e movimentos sociais;
- Temporalidades e território;
- Arquivos, museus e narrativas de memória;
- Memória, testemunho e direitos humanos.
Referências
Caicedo Ortiz, J. A. (2008). Historia oral como opción política y memoria política como posibilidad histórica para la visibilización étnica por otra escuela. Revista Educación y Pedagogía, 20(52), 27–42.
Candau, J. (2002). Antropología de la memoria. Buenos Aires: Editorial Claves.
Cuevas Marín, P. (s.d.). Memoria colectiva: Hacia un proyecto decolonial.
Florescano, E. (1998). Memoria histórica. México: Taurus.
Gnecco, C., & Torres, A. (2003). Pasados hegemónicos, memorias colectivas e historias subalternas. In C. Walsh (Ed.), Estudios culturales latinoamericanos: Retos desde y sobre la región andina (pp. 197–214). Quito: Universidad Andina Simón Bolívar; Abya-Yala.
Hartman, S. (2008). Lose your mother: A journey along the Atlantic slave route. New York: Farrar, Straus and Giroux.
Hirsch, M. (2022). A geração da pós-memória: Escrita e cultura visual depois do Holocausto (M. A. Peres, Trans.). Belo Horizonte: Editora UFMG.
Mbembe, A. (2017). Políticas da inimizade. Lisboa: Antígona.
Rivera Cusicanqui, S. (2018). Un mundo ch’ixi es posible: Ensayos desde un presente en crisis. Buenos Aires: Tinta Limón.
Torres, M. L. M. J. (1993). História & memória. Revista Brasileira de História, 13(25), 5–22.
Torres Carrillo, A. (2003). Pasados hegemónicos, memorias colectivas e historias subalternas. In C. Walsh (Org.), Estudios culturales latinoamericanos: Retos desde y sobre la región andina (pp. 197–214). Quito: Universidad Andina Simón Bolívar; Abya-Yala.
Saiba mais sobre Chamada para o dossiê Memória e Epistemologias do Sul Global