Dossiê Comunicação e Pensamento Indígena
Editores e editoras convidados:
Andrielle Mendes (Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN)
Ricardo de Jesus Machado (Universidade Federal do Oeste da Bahia - UFOB)
Paula Rasia Lira (Universidade de São Paulo - USP)
Renato Guimarães (University of Paris 1 Panthéon Sorbonne e Institute for Romance Studies, Friedrich Alexander-Universität Erlangen-Nürnberg)
Renata Lemos Morais (Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires CIRET, Paris)
Datas importantes:
Data limite para submissão: 15 de agosto de 2025.
Período de avaliação: 16 de agosto a 15 de novembro de 2025.
Previsão de publicação da edição: dezembro de 2025.
O campo da Comunicação, tradicionalmente ancorado em paradigmas ocidentais, encontra no pensamento indígena uma oportunidade para expandir suas fronteiras epistemológicas e metodológicas. O pensamento dos povos originários do Brasil, representando 305 etnias e 274 línguas distintas (IBGE, 2010), oferece uma visão de mundo que transcende as dicotomias típicas do pensamento ocidental, como natureza e cultura, sujeito e objeto, corpo e espírito (Viveiros de Castro, 2002). Em vez de uma visão reducionista e linear da comunicação, o pensamento indígena nos propõe uma abordagem interconectada, onde a comunicação não se limita à troca de informações, mas é entendida como uma teia complexa que envolve cosmologia, espiritualidade, arte e vivência comunitária (Kopenawa & Albert, 2015).
Essas perspectivas comunicacionais são profundamente enraizadas em uma compreensão do mundo que valoriza a interdependência entre todos os seres vivos, em consonância com a ideia de uma "partilha do sensível" (Rancière, 2000). A comunicação, sob essa ótica, não é apenas um processo técnico ou mediado por tecnologias, mas um ato relacional e ritualístico que sustenta a própria vida social e espiritual das comunidades (Cunha, 2009). "Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente." (Krenak, 2019, p. 15)
As cosmovisões indígenas oferecem alternativas concretas e simbólicas para enfrentar o colapso ambiental e social contemporâneo (Kopenawa & Albert, 2015; Krenak, 2019). A narrativa xamânica, por exemplo, integra elementos da natureza à prática de cura como formas de comunicação que são simultaneamente estéticas, éticas e políticas (Kopenawa & Albert, 2015). Essa complexidade do pensamento indígena é, portanto, crucial para o campo da Comunicação, pois nos desafia a reconsiderar nossas suposições sobre o que é comunicar, quem comunica e por quais meios (Viveiros de Castro, 2002).
“Em um país onde até hoje se discutem os efeitos do monopólio da fala (Sodré, 2010) e da monocultura da mente (Shiva, 2003), é interessante perceber a existência de grupos sociais que conferem o status de gente a não humanos e reconhecem a capacidade que não humanos têm de se expressar e dialogar” (Guilherme e Lacerda, 2024, p. 98), sobretudo, em países colonizados como o Brasil, onde a escravização conferiu status de sub-humanos a indígenas e negros, criando, como ressalta Ferreira da Silva (2019), uma dívida impagável.
Mesmo que a restauração do valor total expropriado de terras nativas e corpos escravos (sic) - incluindo seus conhecimentos e tecnologias - seja tão improvável quanto incompreensível (Ferreira da Silva, 2019), desinvisibilizar as contribuições do pensamento indígena para os estudos comunicacionais pode ajudar a restituir uma parte desse valor (Guilherme, 2022).
Mas, embora seja crescente o protagonismo de acadêmicos e anciões indígenas, que cada vez mais deixam de ocupar apenas o lugar de objetos de pesquisa para se tornar produtores de conhecimento de suas comunidades (Corrêa Xakriabá, 2018), o racismo científico/epistêmico/linguístico, ainda manifesto em espaços de produção de conhecimento científico, nos leva a indagar, parafraseando Spivak (2010): “pode o pesquisador indígena falar?” São vários os relatos de exclusão, violência e assédio, mas abundantes também as estratégias criadas pelos intelectuais oriundos de povos indígenas e outras comunidades tradicionais para produzir um “sentipensar” orgânico e confluente que espelhe a diversidade característica de um país com uma raiz afropindorâmica tão resistente (Bispo, 2015).
Reconhecer a participação indígena no fazer epistemológico, observa Correa Xakriabá (2018), é uma forma de contribuir para o processo de descolonização de mentes e corpos, desconstruindo esse pensamento equivocado de que os povos indígenas não têm capacidade de ocupar os espaços de produção de conhecimento.
Assim, o objetivo deste dossiê é oportunizar a visibilização desse pensamento outro, dessa outra forma de perceber e praticar a comunicação, que abre caminho para a efetivação de um diálogo interétnico e multiespécie, do qual advêm saberes, conceitos e abordagens que carregam dentro de si sementes capazes de propagar formas alternativas de pensar, criar e se relacionar com o mundo.
Convidamos os pesquisadores à submissão de artigos que investiguem essas perspectivas, explorando como o pensamento indígena pode renovar, indigenizar e revitalizar as teorias e práticas comunicacionais contemporâneas. Buscamos contribuições que abordem a comunicação de maneira transdisciplinar, considerando aspectos cosmológicos, metafísicos, artísticos e experienciais que compõem a epistemologia indígena, contribuindo assim para a renovação do cânone da teoria comunicacional para que possa dialogar com as urgências do presente.
Cultivando a “possibilidade de existir e pensar outramente” (Ferreira da Silva, 2019, p. 47), encorajamos, fortemente, pesquisadores indígenas - e também oriundos de outras comunidades tradicionais - a enviarem artigos para o dossiê a fim de compor um panorama atual acerca das contribuições do pensamento indígena para os estudos comunicacionais. Por isso, são bem vindos textos que abordam os seguintes pontos:
- Contribuição de autores indígenas para os estudos da comunicação;
- Inter-relação entre perspectivas indígenas e teorias da comunicação;
- Arte indígena; cinema, publicidade, jornalismo e outras práticas comunicacionais indígenas.
- Colonialidade do poder/saber/ser;
- Epistemicídio e invisibilização dos acadêmicos indígenas (sobretudo das mulheres);
- Descolonização dos currículos; educação e comunicação indígenas;
- Racismo linguístico e epistêmico;
Referências
Correa Xakriabá, C. N. (2018). O Barro, o Genipapo e o Giz no fazer epistemológico de Autoria Xakriabá: reativação da memória por uma educação territorializada. (Dissertação de mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais). Centro de Desenvolvimento Sustentável, Universidade de Brasília. Brasília – DF. 218 p
Cunha, M. C. da. (2009). Cultura com aspas e outros ensaios. Cosac Naify.
IBGE. (2010). Censo Demográfico 2010: Resultados preliminares. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
Ferreira da Silva, D. (2019). A dívida impagável. São Paulo: Oficina de imaginação política e Living Commons.
Guilherme, A. C. M. M. (2022). Comunicadoras indígenas e a de(s)colonização das imagens. Orientador: Juciano de Sousa Lacerda. 2022. 289f. Tese (Doutorado em Estudos da Mídia) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.
Guilherme, A. C. M. M.; Lacerda, J. S. Um outro olhar: apontamentos sobre a representação dos povos indígenas na mídia. In: Viviani, A. E. A; DRIGO, M. O. (Orgs.). Mídia, violência e alteridade: perspectivas e debates. (2024). Curitiba, Paraná: Appris.
Kopenawa, D., & Albert, B. (2015). A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. Companhia das Letras.
Krenak, A. (2019). Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras.
Rancière, J. (2000). A partilha do sensível: Estética e política. Editora 34.
Santos, A. B. (2015). Colonização, quilombos: Modos e significações. Brasília: INCTI.
Shiva, V. (2003). Monoculturas da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução Abreu Azevedo. São Paulo: Gaia.
Sodré, M. (2010). O monopólio da fala: função e linguagem da televisão no Brasil. 8ª ed. Petrópolis: Vozes.
Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida, Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG.
Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. Cosac Naify.
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